quimera (2007)

quimera

2007. Instalação. Resina acrílica e pigmentos sobre piso e paredes. Galeria Virgílio, São Paulo.

Quimera

Por Guy Amado, julho de 2007.

A um primeiro olhar, é difícil ou improvável pensar que a experiência de imersão promovida por Quimera no espaço expositivo da Virgílio possa ter sido gerada a partir de uma situação relativamente tensa, de um impasse que Alice Shintani experimenta em sua produção. Ou, mais especificamente, na relação com sua produção a partir das demandas – expositivas, institucionais, de mercado, etc. – a que esta começa a ter que responder. Nada muito extraordinário na trajetória de uma jovem artista, mas que o alto grau de rigor de Alice para com o próprio trabalho impõe uma série de reflexões mais cuidadas. E nesse sentido o título pode ser de certa forma emblemático – embora não explicativo – das pulsões que alimentaram essa mostra.

Realizada – quase “aplicada” – diretamente sobre o piso e paredes da galeria, a, digamos, pintura-instalação que dá nome à exposição distancia-se daquela fisionomia mais silenciosa e “agradável” característica da produção com que a artista vem ganhando visibilidade de tempos para cá. Envolvendo o ambiente num registro ambíguo, quase alegre mas amortecido pela paleta cromática áspera, a pintura ainda assim vibrante de “células-escamas” – livremente derivadas de gravuras japonesas – não induz a uma leitura clara a respeito de sua existência, embora a intensidade de tal presença pareça conter algo de afirmativo em seu bojo.

Nessa desconcertante e algo anódina padronagem de matizes orgânicos que reveste e contamina o espaço, a mencionada origem turbulenta da proposta se revela aos poucos. A natureza incerta do trabalho conduz a uma experiência de estranhamento. De que diabos se trata essa “pintura-ocupação”? Seria ela imbuída de alguma pretensão na linha da site-specificity, ou quem sabe visa aludir a certa tradição ornamental? É pintura de fato? Talvez uma pintura que não é… O estranhamento é deliberado, sem dúvida: mais que isso, apresenta-se como elemento estrutural na prática da artista, tomada que ela está de um ímpeto em investigar e repensar certos aspectos definidores do estatuto pictórico na contemporaneidade, problematizando no próprio trabalho a “verdade” canônica de algumas convenções.

Interessa a Alice desestabilizar algumas certezas e reducionismos em torno da linguagem pictórica. De como a pintura pode ser instrumentalizada por discursos e leituras esquemáticos, numa chave interpretativa que não raro compromete ou esvazia a natureza de sua própria razão de ser.

A opção por recorrer agora a uma nova solução plástica fala um bocado do processual da artista. A escala expandida inédita, a tinta aplicada diretamente sobre a arquitetura e certa “vontade ambiental” convergem para aspectos, ou anseios, já percebidos em sua pintura “convencional”: o raciocínio instalativo, o modo de pensar a relação de seus quadros com o espaço, a boa e velha tinta suvinil, a convocação do público ao exame mais atento do que se passa em suas telas, para além dos “confortos da forma” que se delineiam indolente e ardilosamente em suas superfícies, bem como da suposta “vocação moderna” das mesmas – como uma apressada leitura formal pode sugerir. Está tudo ali, subjazendo àquela espécie de epiderme estranha, embora certamente em registro mais velado.

Todo esse jogo de [falsas] aparências e contrapontos ganha aqui uma nova escala, e não apenas do ponto de vista literal. Por outro lado, a proposta imersiva em curso com Quimera não pretende oferecer uma leitura fechada, objetivamente coesa e ilustrativa de tais pulsões. O projeto se apresenta mais como fruto de uma inquietação pontual, podendo ou não sinalizar novas possibilidades na práxis da artista. A conjunção de momento e local propícios só fez potencializar a empreitada. Realizado em um modus operandi não de todo dominado por Alice, como tal o trabalho se oferece mais ao risco; o que é sempre um fator estimulante, indicativo de frescor.