delfina foundation (2017)

delfina foundation

2017. Residência artística, Delfina Foundation, Londres.

Vulnerabilidade Como Dissenso

Relato sobre a temporada de residência na Delfina Foundation, Londres, outono de 2017.

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O que pode a arte – ou o que pode uma arte a partir de um ponto na multidão – nesses tempos de crise ética em todos os ares da existência?

A intenção era chegar em Pasargada apenas com a bagagem de mão e o disco de Caetano sob o braço – aquele primeiro gravado no exílio em 1971, que incluía uma regravação de Asa Branca e a então inédita London, London -, entrar em contato com expatriados falantes de farsi para traduzir o álbum na língua persa e imaginar alguma nova gramática visual para esses tempos bicudos através de uma perspectiva talvez mais universal, mesmo com o risco dos possíveis clichês.

Era minha primeira experiência de residência dita artística fora do Brasil e, embora tivesse proposto um recorte de pesquisa, suspeitava que qualquer planejamento evaporaria nas primeiras vinte e quatro horas. Foi o que aconteceu, e imagino que seja essa a tônica em residências que se propõem efetivamente artísticas.


O Programa

A Delfina Foundation é um pequeno edifício de quatro andares localizado próximo à estação central de trem e a algumas dezenas de metros do complexo de Buckingham. No andar térreo, a sala de jantar e a cozinha; no subsolo, uma galeria para exposições; no primeiro andar, a biblioteca e o escritório – onde uma equipe administrativa enxuta (o staff) coordena e opera as atividades da instituição que, além de acolher e dar suporte às residências, desenvolve um programa público de debates, encontros e exposições; no segundo e terceiro andares, a área privada aos residentes, que são acomodados em quartos individuais, banheiros compartilhados em duplas e uma estação de lavanderia por andar.

As residências são agrupadas em quatro temporadas de três meses cada, seguindo as estações do ano. A cada temporada, até oito residentes compartilham as instalações em convivência diária com o staff. Há temporadas focadas no desenvolvimento coletivo de um tema anual da instituição e outras, como na que participei, em que cada artista conduz sua pesquisa de forma independente às demais atividades em curso. O programa não provê estúdios para a produção de obras e não houve em momento algum qualquer pressão para geração de “resultados”. Ao contrário, há um forte estímulo para o residente “dar um tempo” a fim de conhecer e usufruir a cidade e a cena artística local.

Para os artistas, o custo da residência é integralmente subsidiado pelo programa: passagem aérea direta de ida e volta, vale-transporte para os deslocamentos locais, diárias confortáveis para gastos pessoais e um complemento para aquisição de materiais prontamente creditados em nossa chegada. A estrutura é financiada substancialmente pela fundadora, Delfina Entrecanales, uma senhorinha hoje com noventa anos, e complementada via parcerias com colecionadores e outras instituições públicas e privadas como a SP-Arte.

Quinzenalmente, a fundação realiza um evento concorrido na cidade, o Family Lunch. Um almoço com tempo cronometrado e assentos determinados entre staff, residentes e convidados do circuito londrino: patronos, colecionadores, diretores de instituições, galeristas, curadores, jornalistas e outros formadores de opinião. O diretor da Delfina atua como mestre-de-cerimônias e conduz uma performance informal para atuali- zar os convidados sobre as atividades em curso e introduz os residentes um a um que, seguindo o script, devem compartilhar brevemente suas visões e pesquisas.

Logo na primeira semana da estadia, às vésperas da abertura da feira de arte, cada um de nós recebeu um maço personalizado de cartões de visita. Soubemos que os business cards foram resultado do trabalho de um artista da temporada anterior em resposta a uma frase já lendária da patrona Delfina Entrecanales. Diz ela que “não coleciona obras de arte, mas artistas”.

Collecting as Practice (algo como “o ato de colecionar como prática”) era o tema em curso naquele ano, em torno do qual giravam as atividades públicas da fundação. Além de exposições, debates e encontros, o programa incluía residências para colecionadores convidados conviverem algum tempo e espaço com os artistas residentes.

A despeito da programação existente, recebemos um efusivo convite por parte da direção para nos apropriarmos de suas instalações e assumirmos a casa como nossa efetivamente – o que procuramos tomar ao pé-da-letra.


A Cozinha

O que à primeira vista aparentava se tornar uma experiência pedagógica e intensiva de networking e adequação de discurso para o chamado circuito de arte global, mostrou-se algo distante da impressão inicial. O centro vital e afetivo da Delfina Foundation é a cozinha, e foi a partir e em torno dela que vivemos afetivamente a residência.

Foi na cozinha que tivemos conversas inesperadas e de generosa escuta ativa sobre nossos processos de trabalho, onde compartilhamos dúvidas e angústias, reavaliamos escolhas e certezas, dividimos momentos de silêncio, rimos de nós mesmos, disparamos incontáveis alarmes de incêndio e imaginamos futuros. Era ali o momento em que muitas vezes convidamos o staff a também dar um tempo no fluxo do trabalho de escritório para compartilharmos um almoço à mesa, uma fornada de pão-de-queijo no final da tarde, ou uma sopa solidária numa madrugada de montagem de exposição.

Cozinhamos arroz agulhinha com alho e cebola; feijão preto com folha de louro do quintal da Gillean – escocesa de sotaque forte, longos cabelos brancos e diretora administrativa da Delfina; linguiça apimentada feita no açougue goiano ao lado do metrô de Stockwell indicado pela Daiane – housekeeper da Delfina que está prestes a retornar definitivamente para Brasília onde está montando uma academia de ginástica; farofa de banana com saquinho de farinha Yoki guardado pela Hena – coreana paulistana gerente da residência; mandioca frita comprada na feira da comunidade de Dalston com a Filó – intérprete cabo-verdiana de Cesária Évora e também housekeeper que cuida há mais de década da Delfina; pão-de-queijo usando ovo, leite e polvilho doce; beijinho de côco caramelado da Óia Brigadeiro; pisco sauer contrabandeado pelo primo do Daniel – artista residente peruano que mora em Amsterdã; picles da Poppy – a “faz tudo” da Delfina; e mais vinagretes, missoshirus, macarronadas de domingo, kareraissus, bibimbaps e kimchis, caipirinhas, ovos fritos, minestrones de madrugada, lámens e… tapiocas.

 

Comerciais, tapiocas e tuiuiús

Há alguma transformação emancipatória que não sei explicar bem quando a gente se percebe vulnerável. Por exemplo, na falta de domínio da língua que te exige uma maior simplicidade para compartilhar um pensamento e um esforço de escuta redobrado; ou quando somos solicitados a falar assertivamente sobre nossa prática – sem sabermos ao certo o que fazemos – durante um almoço formal cronometrado; ou quando assistimos um debate na própria residência entre colecionadores e curadores discutindo abertamente motivos para investir em um ou outro artista como se estivessem conversando sobre compra de ações. Essa sensação de vulnerabilidade acabou me conduzindo a duas intervenções no programa, ambas imprevisíveis de antemão.

A primeira intervenção ocorreu em um evento oficial de Family Lunch, numa sexta-feira de Londres. Realizamos um takeover do almoço propondo um cardápio alternativo e modificando o ambiente da sala de jantar. Ao mesmo tempo, realizamos também o takeover do Instagram da SP-Arte, onde compartilhamos a intervenção no almoço da Delfina em tempo-real. Cozinhamos um comercial, que servimos aos convidados no formato de prato-feito: arroz, feijão preto, vinagrete, linguiça, couve refogada e farofa, sobre uma tablecloth (toalha de mesa) formada por trezentas tapiocas preparadas durante a semana, pintadas à mão com tinta de sucos de legumes e dispostas sobre uma forração de timetables (encartes com horários de partidas e chegadas de trens britânicos).

Nesse almoço específico, não precisei “explicar” minha prática aos convidados, muito menos em tempo cronometrado. Apenas introduzi a refeição contando que o comercial é uma refeição popular brasileira servida em bares e restaurantes, que remete à comida caseira, e consumida principalmente por trabalhadores sem condições de interromper o serviço para almoçar em casa. E deixamos duas perguntas: “how would we deal with something we do not understand at first-sight?” (como podemos lidar com algo que não compreendemos à primeira vista?) e “what we could loose when we cannot loose time?” (o que podemos perder quando não podemos perder tempo?).



A segunda intervenção foi endereçada ao tema em curso na Delfina, “Collecting as Practice”, e apresentada no evento de encerramento da residência. A partir da adaptação de um projeto recente realizado em uma praça pública de São Paulo, utilizamos o espaço físico da sala de jantar como ateliê para a preparação de trezentos tuiuiús – bandeirinhas de tecido pintadas com tinta spray -, o que gerou novamente uma alteração no ambiente da residência e uma reação animada entre os usuários do espaço (na semana anterior, a ocupação da cozinha com polvilhos, pincéis e tintas para a preparação das trezentas tapiocas para o Family Lunch já havia criado um clima de empolgação – houve quem reportasse estar vendo pela primeira vez alguém utilizar pincel e tinta na Delfina). Após duas semanas de trabalho de ateliê, apresentamos uma instalação imersiva com os tuiuiús na sala de jantar, em diálogo com obras dos demais residentes instalados pela casa. Os tuiuiús foram compartilhados (distribuídos) gratuitamente com um efusivo público visitante – formado por colecionadores, estudantes, artistas, galeristas, curadores, jornalistas, montadores da exposição e curiosos acidentais -, como uma pequena deriva simbólica, “Collecting as (everyone´s) Practice”.

Para além de Londres

A convite de uma parceria entre a Delfina Foundation e a sueca Valand Academy, tive a oportunidade de viajar à Gotemburgo e passar alguns dias com a comunidade acadêmica local para uma apresentação e visitas a estúdios dos alunos de bacharelado e mestrado em artes – uma experiência inédita para mim (mesmo no Brasil) e muito gratificante – seja pela oportunidade de interlocução com os alunos, com quem trocamos repertórios, dividimos anseios e dúvidas e compartilhamos desejos; seja pelo interesse demonstrado pela comunidade sobre minha trajetória, as motivações e escolhas que fiz, além de uma curiosidade empática sobre passos futuros.

Uma nota, o deslocamento à Gotemburgo e os custos de estadia foram plenamente cobertos pela Valand Academy, além de um pró-labore relativo à apresentação e as visitas aos estúdios dos alunos da faculdade – um suporte complementar à ajuda de custo diária que já recebia pela Delfina – o que me permitiu financeiramente estender a viagem à Finlândia e a Russia após a conclusão do período de residência em Londres.


O nosso tempo

Três meses de residência em Londres, cinco meses de viagem: São Paulo, Londres, Muenster, Londres, Gotemburgo, Londres, Notingham, Londres, Paris, Berlim, Londres, Helsinki, São Petersburgo, Londres, São Paulo. As trocas foram muitas, surpresas e impregnações idem, e é um tanto frustrante não conseguir compartilha-las com a devida abrangência neste rápido registro.

Imagino que a reflexão ainda demandará tempo, talvez bastante tempo. Neste momento, uma certeza concreta é de que a experiência ao qual pude ter acesso deveria ser estimulada e financiada – de alguma forma – a um universo maior de artistas, principalmente àqueles que não se enquadram no perfil do chamado “artista  emergente”. Exceção à regra, o edital do prêmio de residência da SP-Arte foi direcionado a artistas acima de trinta e cinco anos. Tenho certeza que a residência me foi mais enriquecedora hoje do que se tivesse acesso à ela há dez ou quinze anos atrás. Dentre as incontáveis lacunas do nosso precário sistema institucional de arte, existe uma fundamentalmente grave à produção artística: a quase total ausência de interlocução entre as diferentes gerações de artistas, curadores e pesquisadores – gerações essas cada vez mais curtas.

Uma trajetória artística demanda o curso de uma vida longa, aberta a experimentações e riscos, independentemente de reconhecimento institucional ou de mercado. É o acúmulo lento desse tempo que se traduz na potência de uma poética – algo que se negligencia quando as oportunidades são direcionadas a gerações ainda em formação, com base em um ou outro recorte específico de pesquisa.

Se dermos a chance de nos expormos a novos contextos – ou a contextos que tendemos a evitar – e nos permitirmos abraçar vulnerabilidades (as nossas e, por espelho, as alheias), talvez nos surpreendamos na conexão (ou reconexão) com algo mais profundo. A despeito de nacionalidades, identidades culturais, demandas sociais, escolhas estéticas (ou a abstenção destas), bandeiras e afins – em suma, a despeito das contingências do presente -, há algo de universal que comungamos através de um bom prato de arroz com feijão.

E cronômetros à parte, disso já sabiam os neandertais.

Alice Shintani

São Paulo, 25 de fevereiro de 2018.