Na geometria, a linha reta é a mais simples de todas as linhas, sendo definida como: “um conjunto infinito de pontos”. A partir dela, nos localizamos no tempo e no espaço, organizando, com frequência, nosso raciocínio, leitura e experiência em noções como linearidade, progressividade e racionalidade. A linha reta é só uma forma, mas tem o poder de organizar todo um modelo de pensamento.
O antes e o depois, a pergunta e a resposta, o certo e o errado: pontos em oposição que delimitam linhas até então infinitas. São como ferramentas que servem para nos situar no mundo: pontos fixos, placas de sinalização, manuais, cartilhas. No entanto, constatamos que quando as certezas são muitas, sobra pouco espaço para imaginar. O texto de exposição que se propõe a explicar alguma coisa, talvez seja uma dessas ferramentas que torna a experiência estética um pouco automática ou previsível. Uma linha reta que tem inicio, meio e fim. As palavras podem surgir gigantes diante dos trabalhos aos quais se referem, poderosas e autoritárias, mas podem também construir curiosos arranjos entre os registros verbal e visual.
“Menas”, palavra que dá título a exposição de Alice Shintani, é um desses exemplos. Sem classificação no dicionário, “menas” pode ser utilizada tanto como o feminino de “menos” dentro de uma linguagem coloquial, quanto como expressão que denota ironia a algo que está sendo superestimado. “Menas” se define, portanto, como uma palavra intermediária, banida da norma culta, circula por espaços pouco legitimados, e embora a própria palavra pareça, algumas vezes, não se levar a sério, pode assumir uma força crítica em determinadas situações. Para os ouvidos mais rigorosos, “Menas” pode soar incomum ou desagradável, causar uma perturbação tal qual a linha reta que, ao sofrer alguma interferência, é distorcida: sinal pirata, linha cruzada, radiação.
É por via das contaminações e envolvimentos que o trabalho de Shintani opera, seja quando faz uso de catálogos de exposição ou dos postes da praça como suporte para suas pinturas; quando escolhe caixas de mercadorias conforme sua origem, produto e qualidades gráficas para compor com as suas Sanfonas; ou quando intercala em seu Instagram – um dos espaços de trabalho da artista – fotografias de pratos de comida e de obras capturadas a partir do mesmo ângulo. Aproximar-se da prática de Shintani é permitir-se imaginar uma linha do tempo que segue por direções múltiplas, desmembrando-se aqui e ali, gerando novas conexões e significados. Hiperlinks.
É possível elaborar uma nova gramática a partir do trabalho de arte? Uma gramática que nos possibilite ler a partir das cores e das formas ou ver a partir do que o corpo sente no espaço? As Sanfoninhas, quando espremidas, compõem um tipo de código colorido secreto que, por mais que pareça decifrado no momento em que as dobraduras se planificam, não deixa de ser, enquanto código mesmo, já uma mensagem. Por vezes as Sanfoninhas se agrupam em caixas, podendo ser rearranjadas conforme qualquer vontade; é como se cada combinação desse conta de provocar em nós estímulos diversos, que associados, produzem significados. No espaço, se espalham sobre caixas de papelão dispostas em zigue-zagues pouco ordenados, demandando de nós uma leitura multilinear, um olho “destreinado”, corajoso em se perder. Até mesmo as palavras que estampam as caixas dos produtos de limpeza e de alimentação não se pretendem literais, funcionam como pontes de acesso a símbolos, questões afetivas, sociais e políticas, gerando uma espécie de atmosfera polifônica, embora o silêncio da galeria de arte seja quase absoluto.
A configuração labiríntica que experimentamos em “Menas” – dos arranjos do espaço aos arranjos das pinturas e suas distorções – nos encoraja a inventar outro sistema de navegação. Tudo aqui parece vibrar: os objetos nos corpos, os corpos nas cores, as mãos aos olhos, os vincos e as dobras, o chão, o teto e a luz. Vibra e ressoa, perturba, acalma, motiva. Investimos energia naquilo que observamos, tocamos, sobre aquilo que pensamos e de volta somos investidos de suas energias. Não há mais pureza, só contaminação. Uma linha reta é pura forma? Experimente excluí-la de seu repertório. Uma forma não é só uma forma. Não é menos, só é menas.
– Julia Coelho, agosto de 2017.